Cornucopia de Raúl M. Santos apareceu nas tendas hai já quatro ou cinco meses; ainda alguns meses antes já estava sob o meu radar. Três vezes cheguei a tê-la entre as mãos numa livraria e três vezes refusei pagar por ela. Conto isto porque é, logo chegarei, importante para a minha argumentaçom posterior. A cousa é que Cornucopia leva um tempo a se fazer presente no debate literário. Foi a ganhadora do Prémio Torrente Ballester de romance em galego de 2021 e recebeu resenhas elogiosas por parte da crítica e do público —do público com que eu pudem falar, vaia.
Ambos os fatores, especialmente o primeiro, servem para dar a impressom de que o romance existe —o qual nom é pouco para uma novidade editorial em galego—, mas um faria bem em nom confiar demasiado nesses índices para decidir se gastar o seu dinheiro. Os prémios literários galegos, e provavelmente os de toda a parte, som um indicador de que o produto premiado é, com efeito, melhor do que a maioria do publicado no sistema. Mas isto nom é dizer muito. Os elevados ritmos do consumo contemporâneo fam que os tempos de ediçom seja progressivamente mais e mais frenéticos. Dito singelamente: é preciso publicar um aluviom de broça para a indústria cultural funcionar e, com sorte, algum título conseguir destacar entre o vulto. É o que L. T. Smash definia no episodio 14 da temporada 12 de Os Simpson como estratégia superliminal: alístate a la marina! Nessas condiçons, estar por riba da média —levar um prémio— nom di demasiado sobre a qualidade dum livro, porque a média está por baixo do cinco. Para além, embora os galardons premiem livros que nom som os piores, tendem também a expulsar os melhores. O sistema editorial contemporâneo precisa um padrom de mediocridade que se ajuste ao gosto do seu publico-alvo, que nom tem tempo nem interesse em explorar sintaxes barrocas, sujeitos deslocados, realidades instáveis e outras raridades que davam capital cultural às classes medias letradas europeas na segunda metade do século passado. O livro que levar o prémio deve poder ser lido antes de dormir. Já por pedir, deve poder ser lido antes de dormir por estudantes de secundário. Nada disto é o caso, vaia por diante, desta Cornucopia, tam anómala que dá para pensar como conseguiu ser efetivamente premiada.
Estava eu a dizer que tivem entre as mãos Cornucopia de Raúl M. Santos várias vezes e nom me acabei de decidir por ela até hai pouco. O motivo é simples: abrindo um par de páginas à toa, o que encontrei estivo longe de me convencer. Abonda com lermos a contracapa, com certeza redigida polo próprio autor, para exemplificar aquilo que me afastou durante um par de meses:
Atende aquí. De momento vas ben, pero atende. Polo motivo que fose colliches este libro e décheslle a volta para ver que pon na parte de atrás. Iso é o que se fai. Agora a min tócame contar un pouco de que vai e intentar convencerte para que o collas e o leas. Para ti ten que ser fácil, pero para min non o é.
O problema vén ser que esta é a mellor novela xamais escrita en ningún idioma. Xoo! Dirás ti. Quítalle hachas aí, ho! E tes razón. Estas cousas, aínda que se pensen, non se din.
Pero é que esta é a mellor novela xamais escrita en ningún idioma, e, como todas estas, o problema é que non se pode dicir de que vai, pois todas as mellores novelas xamais escritas en ningún idioma van de nada e mais van de todo, como esta. Entendes o que digo? Eu tampouco.
Creo que o mellor vai ser que esquezas este texto e leas o libro directamente. Si. Imaxina que o colliches, que lle deches a volta e que aquí non había nada. Un espazo en branco. Este texto que acabas de ler non existe.
Abre o libro pola primeira páxina, ou pola que queiras, e le. Nada máis.
Esse é o estilo de Santos nom apenas no breve texto publicitário da contracapa, mas também durante as 181 páginas que ocupa o romance. É uma mistura entre registo oral e escrito, abundante em piadas ligeiras e pronto à digressom; uma forma de metaficçom auto-irónica que acho que chega um par de décadas tarde. Nom resulta difícil lembrar-se, por exemplo, do Borrazás dos 90 enquanto um lê Cornucopia, e a comparativa nom é, ao menos estilisticamente, favorecedora. É fácil também nom pensar em Etceteramente (2022), o último romance de Xelís de Toro —aliás magnífico—, que coincide com estoutro em interesses, estilos, e procedementos, o qual estranha se temos em conta que de Toro leva a Santos uns quantos anos. Serei honesto: nom encontro outra palavra para definir a impressom que me causou esse estilo humorístico-metafictivo que um pouco cringe. Cornucopia deposita muitos esforços em resultar engraçado e engenhoso, e poucas vezes o consegue plenamente. Quero tirar isto de enriba para poder começar com as louvanças, que nom serám poucas, mas quase sempre condicionais.
“O livro que levar o prémio deve poder ser lido antes de dormir. Já por pedir, deve poder ser lido antes de dormir por estudantes de secundário. Nada disto é o caso, vaia por diante, desta Cornucopia, tam anómala que dá para pensar como conseguiu ser efetivamente premiada.”
Até aqui o mau, pois. O bom: que trás esse estilo irregular hai, efetivamente, um romance mui potente e cheo de boas ideas, algumas delas tam boas que exigem ir mui atrás para encontrar-lhes paralelo na narrativa galega recente. O misto: que ambas as caras do romance, a boa e a má, estám tam entrelaçadas que resulta mui difícil destrinça-las. O (mui) bom livro que Cornucopia é nom poderia existir sem o romance nom tam bom que também lhe toca ser. A ver se me explico.
O livro de Raúl M. Santos leva o nome que leva por algo. Durante quase a metade da sua extensom quem lê nom dá encontrado nada semelhante a uma trama coesa. Hai um narrador em primeira persoa que nom é o autor e que inicia a sua autobiografia apenas para pular para outro personagem que parece ser o centro da trama; este é aginha abandonado para passar para outro, e assim por diante. Entretanto aparecem exposiçons aparentemente gratuitas sobre cousas mui diversas, a maioria delas bem conhecidas por qualquer persoa adulta (“No mundo natural existen dous tipos de cousas: os seres vivos e os inertes. Os seres vivos teñen a peculiardidade de que nacen e morren; os inertes, non”, p. 95), o qual fai duvidar se todo isso vai para algum lugar. Parte do jogo que propôm Cornucopia consiste em fazer hesitar o leitor sobre que histórias e digressons conduziram para algum destino, e o mais poderoso dos trucos que atesoura é ver como por fim as peças efetivamente encaixam. Cornucopia procura uma estética do gratuito: cabe todo o que se lhe ocorra ao autor, e incluso as tramas verdadeiramente centrais som em relidade menores. Som histórias que nom paga a pena contar e que, porém, Santos consegue fazer necessárias.
Este truco é polo menos tam velho como o Tristram Shandy e deveria ter perdido muito do seu efeito, mas Santos consegue revitaliza-lo através de vias inesperadas. Se o humorístico que hai na novela nom está mui bem conseguido, hai outros tons emocionais que o autor trabalha com muita mais delicadeza. Refiro-me, em concreto, ao desinteresse; um sentimento aparentemente pouco atrativo e que, porém, é central em certas modalidades satíricas da narrativa em primeira persoa. Durante a leitura da maior parte do texto, um fica com a impressom de que quer o narrador, quer o verdadeiro autor, vam escrevendo quase por obriga, sem ningum investimento emocional no que estám a contar. Essa impressom é reforçada por alguns (poucos) insertos em que o narrador comenta que se passarom anos entre a última vez que escreveu e o momento em que o está a fazer. Dá igual ser verdade ou mentira: parece certo. O romance semelha o produto duma relaçom tensa com a escrita, a de alguém que visa terminar uma primeira obra e nom é capaz, polo que se autoimpom a rutina de continuar com o que seja, como se é uma pequena anedota sobre beisebol.
Essa impressom simultânea de dissidia e bloqueo do escritor leva sendo procurada pola autoficçom desde hai décadas, e penso que o resultado a que chega Cornucopia é o mais conseguido que tenho visto, talvez porque ilude a tentaçom de poetizar: o sublime, por fortuna, nunca comparece. Cornucopia parece ter sido escrita com muitas dificuldades, e por isso mesmo, quando todas as peças encaixam e o que parecia um diário de escritor frustrado resulta ser outra cousa, acava batendo tam forte. É um final brilhante que só é possível por todas as piadas de pouca qualidade que nos fam pensar que de facto nom hai ninguém no volante. Eis o paradoxo central de Cornucopia: o seu conceito do humor e do estilo, que (me) causam uma má impressom, reforzam as suas melhores qualidades. Porque fam parecer o romance muito pior do que é, quando revela todas as suas cartas consegue redimir-se por completo.
No pior dos mundos possíveis, Cornucopia é um acidente, uma raridade. Uma interpretaçom mais otimista quereria ver na sua publicaçom um regresso da literatura experimental após uma década de narrativa galega discreta, por vezes traspapelável.
Gostaria muito de que apariçom de Cornucopia no panorama literário e editorial galego fosse recebida com (maior) calidez. No pior dos mundos possíveis, Cornucopia é um acidente, uma raridade que conseguiu filtrar-se entre os engrenagens burocráticos dos prémios literários galegos e do modelo editorial turnista que se nutre deles. Uma interpretaçom mais otimista, em sintonia com este ano novo do trinque que agora começa, quereria ver na sua publicaçom um regresso da literatura experimental após uma década de narrativa galega discreta, por vezes traspapelável. A aposta quase subsequente de Xerais polo Etceteramente de Xelís de Toro seria, para quem quiger ver milagres onde é provável que nom os haja, uma confirmaçom revigorizante desse otimismo.
Falava ao começo de que Cornucopia “levava um tempo a se fazer presente no debate literário”. A expressom era —convenhamos— hiperbólica, talvez desiderativa. Cornucopia, todavia, deveria ser discutido publicamente; nom apenas porque o mereça —merece-o— mas porque na nossa capacidade para gerar um espaço de reflexom na sua volta disso depende. Textos como este som infrequentes na Galiza contemporânea, e sono, entre outros motivos, porque o seu leitorado esta esparso e desconectado. Contribuir a gerar cenários onde esses livros importem e nom se confundam neste deserto editorial de capas intercambiáveis deveria ser um repto cultural prioritário para esta década de 20.