Moralismo e ficçom nos mundos invertidos: sobre O rapaz e a garça

O rapaz e a garza, a última película de Miyazaki, abre un debate sobre as posibilidades do isekai para sobrepasar ficcións moralistas.

Nos últimos anos, o termo isekai está a experimentar um notável ascenso nos vocabulários críticos internacionais. O conceito refere as ficçons em que pessoas da nossa realidade acedem a um mundo maravilhoso em que operam regras mui distintas: os animais podem falar, as velhas deidades revivescem, as anódinas democracias parlamentares som substituídas por fastosas monarquias de fábula, a aborrecida vida assalariada vê-se transformada num destino épico de salvaçom. Nele podem entrar Digimon, Alice no País das Maravilhas, Undertale ou A viagem de Chihiro; que é como dizer que nele cabe bastante cousa. Obras assim foram já comuns nas literaturas europeias modernas e contemporâneas, especialmente nas dirigidas ao público infantojuvenil. Mas, carentes de uma nomenclatura crítica partilhada, o subgénero que conformam só começou a ser diretamente nomeado nos últimos tempos. A popularidade internacional do anime tem, com certeza, um papel fulcral na preeminência atual do termo japonês.

Escrevo estas cousas ainda um chisco movido pola acabada de estrear O rapaz e a garça (Kimitachi wa Dou Ikiru ka, 2023), produzida polo Studio Ghibli e escrita e dirigida por Hayao Miyazaki. Um olhar rápido à crítica jornalística deixou-me ver que embora esteja a ser encomiasticamente recebida também protagoniza uma certa discussom: a de se o produto achega algo novo à trajetória do estudo e do diretor ou se se trata de um regresso complacente a um isekai que já cultivaram em excesso. Como o que vou tentar aqui nom é exatamente uma resenha, nom me interessarei muito pola novidade do filme nem pola sua qualidade. O que quereria é mostrar como está habitada por uma forte tensom que é estética, política e ontológica, que discute e amplia alguns limites da obra do estudo e do uso maioritário do isekai japonês e internacional. Advirto, por isso mesmo, que o argumento e o final do filme serám completamente estragados.

Tanto nos isekai estritamente japoneses como nos internacionais, a entrada ao mundo maravilhoso produz-se através de um poço ou de uma porta, símbolos liminares que historicamente se ligárom à transiçom entre o mundo da vida e o da morte, bem como à sua transgressom forçada. Outros lugares comuns como o do sonho ou até o do coma reforçam esta ideia, pois som algo assim como os petiscos vivos da morte verdadeira. Orfeu, na sua descida ao Hades, é o precursor grego evidente; a história que recolhe o Kojiki sobre Izanagi, quem viaja ao Yomi na procura da sua esposa Izanami e acaba tendo de fugir ao contemplar o seu processo de putrescência, um precedente japonês. Esses mitos lembram à populaçom que os reproduz que quem transita para o seguinte reino deve ficar lá permanentemente. Som liçons pré-modernas sobre como experimentarmos o dó e chegarmos finalmente à aceitaçom. Por isso mesmo, também funcionam como propaganda anti-necromântica; e este nom é um assunto menor, dada a popularidade dessas práticas na magia antiga e as suas consequências para a higiene e o bem-estar psicológico duma comunidade.

Com o tempo, esses proto-isekai mitológicos fôrom-se transplantando em novos lugares ficcionais. O motivo da visita passageira ao inferno vai-se independizando do mito conforme a fantasia abandona também o terreio da religiom (o milagre) e passa a ser fonte de prazer estético. A Commedia de Dante pode representar um estádio intermedio, pois ainda que a doutrina religiosa continua a ser um dos centros fortes, já nom parece necessário socializar o respeito pola separaçom entre o mundo e o além. As Crónicas de Narnia, por seu turno, constitui um exemplo serôdio; é, por isso mesmo, muito menos subtil e também mais instável: o mundo imaginário é agora uma alegoria da cristandade, mas já nom a cristandade em si mesma. Que o Inferno de Dante e Digimon Adventure fagam parte de uma mesma série histórica —aliás bastante coerente— pode resultar contraintuivo, mas assim que um revir a série japonesa encontrará nom poucas ligaçons com imaginários dantescos —como a montanha espiral, versom em negativo dos círculos infernais.

A progressiva independência entre ficçom e doutrina de que falo nunca chegou a se completar de todo, porém. Daí que o isekai esteja ligado em quase todos os contextos contemporâneos às ficçons infantojuvenis. O emprego da fantasia como veículo de ensinamentos morais é velho, e conecta a India com Europa através da circulaçom do Panchatantra e das fábulas esopianas, ambas as duas de tanto sucesso na Idade Media. Esses relatos fantásticos exemplares fôrom utilizados através dos séculos como piar da educaçom moral de crianças e jovens. Os mundos irreais permitiam modelizar universos fechados em que a complexidade da vida real era devidamente reduzida às capacidades de compreensom infantis, ao tempo que forneciam cenários maravilhosos e sugestivos em que fixar uma atençom ainda mui dispersa. Constituem, por isso  mesmo, todo um testemunho do domínio das velhas geraçons e da aculturaçom forçosa das novas.

De forma oculta, deformada e adoçada pola fantasia, aquela incorpora os mandatos sociais sobre como se deve comportar uma pessoa adulta. O qual tem, naturalmente, um reverso escuro: os isekai som guardiáns estéticos de toda norma política e da reproduçom da realidade existente.

Por causa dessas origens históricas, é comum que o protagonista do isekai seja uma criança que deve defrontar grandes aventuras no mundo paralelo. De forma oculta, deformada e adoçada pola fantasia, aquela incorpora os mandatos sociais sobre como se deve comportar uma pessoa adulta. O qual tem, naturalmente, um reverso escuro: os isekai som guardiáns estéticos de toda norma política e da reproduçom da realidade existente. O mecanismo moralizante adoita ser o seguinte: um rapaz (pois é uma aprendizagem, de regra, masculina) ferido pola realidade em que vive e incapaz de aceitar a sua injustiça é levado para um novo mundo. Ali vive aventuras maravilhosas; sem sabê-lo, vai aceitando as obrigas da realidade, camufladas sob a forma da alegoria. Finalmente, salvo já o plano fantástico do perigo, retorna ao seu fogar corretamente inserido na sociedade exterior, aceites as normas da vida adulta, calmado o sentimento paralisante de que algo vai mal. Nom é estranho que alguns isekai tentassem subverter a sua funçom politicamente estabilizadora e canalizar aprendizagens revolucionárias. Talvez o exemplo mais próximo seja o Arnoia, Arnoia de Xosé Luís Méndez Ferrín, noutrora incombustível leitura obrigatória no ensino secundário e hoje esquecida por resultar demasiado críptica para adolescentes e demasiado plana para pessoas adultas.

Naturalmente, há exceçons. Alice no país das maravilhas constitui um exemplo inusitado de isekai eticamente gratuito, e por isso mesmo é provável que continue a produzir hoje um enorme fascínio. Mas esse caminho foi poucas vezes percorrido. Acontece que os isekai, embora consumidos sobretudo por pessoas mui novas, som produzidos por pessoas velhas, que projetam sobre o seu público o que deve ser aprendido para ser uma cidadá correta e quais devem ser as suas preferências estéticas. Para além, essas produtoras sabem que a chegada das suas ficçons ao destino depende de duas figuras mediadoras especialmente moralistas: progenitoras e professorado. Nom é raro, pois, que introduzam um anzol para elas. Atrapalhadas por este imperativo, as ficçons acabam embutindo ensinamentos mais bem ridículos para passarem por úteis, quer dizer, por educativas. Esse feito levou a acunhar a expressom pejorativa do “poder da amizade”, especialmente aplicado ao shōnen de mundo paralelo. Faltando qualquer cousa que ensinar, algo edificante deve ser introduzido aí; por exemplo, o “poder da amizade”, signifique o que significar isso. A liçom deve ser enunciada; a realidade e os seus imperativos, sair incólumes.

Moralismo e ficçom nos mundos invertidos: sobre O rapaz e a garza

Passo, agora sim, para O rapaz e a garça. Ao começo do filme, o rapaz protagonista perde a sua nai na Guerra do Pacífico; traslada-se, entom, para um enclave rural, onde mora com o pai e a nova esposa —irmá menor da defunta mulher. Esses elementos contextuais preanunciam três possíveis conclusons morais: a superaçom do dó e a aceitaçom da nova figura materna, a adaptaçom ao novo fogar e à puberdade, o anti-belicismo. Parece confirmá-lo a quantidade de metragem dedicada ao mundo real, muito mais abundante do que, por comparar com o referente mais próximo, A viagem de Chihiro. Mas quando o rapaz trava contato com a garça —guia entre dous mundos, como todas as aves— e entra no mundo fantástico, a dimensom alegórica começa a se desestabilizar e a impedir uma leitura instrutiva evidente.

Na quinta familiar há uma velha e ruída torre; derrubadas polo tempo as suas portas, apenas é possível entrar por um furado na terra, como a tubeira do coelho branco que descrevera Lewis Carroll. As velhas vizinhas sabem do carater sobrenatural do lugar, e contam-lhe ao protagonista que um seu ancestral foi bruxo; nessa edificaçom levava a cabo as suas bruxarias até um dia sumir por completo. O trauma já nom pode ser a causa do mundo imaginário que ocupa a maior parte do filme, porque há uma agência independente e anterior no tempo; quando se produzir o retorno do protagonista a realidade das aventuras também nom poderá ser negada como simples alucinaçom, porque existe um homem real a provocá-las.

A essa primeira reviravolta, quase uma meta-reflexom sobre as próprias rigidezes do isekai, continua-a uma segunda: na metade do filme chegamos a saber que o velho bruxo recebia os seus poderes de uma pedra mística sobre a qual fora construída a torre inteira; no terceiro quarto, que a pedra é alienígena e tem vontade própria. O uso de motivos pulp que se vam sobre-escrevendo os uns aos outros para explicar o que há de maravilhoso na película curto-circuita toda vontade alegorizante. A morte da nai e o contexto bélico nom vam ser redimidos; som, simplesmente, o que a morte e a guerra som em toda vida: horrores injustos.

No final do filme, e depois de explorar demoradamente um mundo paralelo em que há mares infinitos, um exército de periquitos antropomórficos e crianças capazes de dominar o fogo, o rapaz encontra-se com o seu devanceiro mágico: leva décadas esperando-o para lhe legar o seu poder de deus criador nessa realidade. Vai mui velho e é necessário novo sangue que aperfeiçoe aquele universo. Entra assim em jogo toda uma nova galeria de motivos nom presentes até o momento: o caráter quase-divino das artistas, a sua responsabilidade sobre as obras que criam e as contradiçons éticas de empregar a ficçom como esconderijo do real. Nom é difícil ver nesta última secçom do filme um algo de testamento vital do próprio diretor, encenaçom fímica da passagem de revezo entre o mestre e o seu discipulado no Studio Ghibli. Ao meu parecer incoerentemente, o protagonista rejeita essa oportunidade de recriar esse universo novo; entende-a como uma forma de fugida dos seus problemas. Reintegra-se, pois, na realidade de que provem, agora mais maduro, mais ciente, mais adulto.

Esta conclusom parece sabotar, naturalmente, todo o meu discurso prévio: no final de O rapaz e a garça cumpre-se o destino moralista do isekai tradicional. Isto é, devo de o reconhecer, certo. Mas o conflito entre as séries temáticas que habitam o filme, as relativas ao trauma infantil, por um lado, e as que se centram na autonomia do mundo criado, por outro, produz uma profunda sensaçom de desfase. O rapaz e a garça é simultaneamente duas películas. Uma trata a aceitaçom da idade adulta; é protagonizada por uma criança e vai do começo até o final dos acontecimentos. Mas há também outra distinta: a história de um meigo que decide prescindir de uma realidade danada para criar uma melhor. Esta segunda película vai de trás para adiante; vê-la inteira nessa chave fai-nos compreender o rapaz como o verdadeiro vilám da película, anti-herói encargado de reestabelecer a singeleza ontológica do mundo e a norma ética burguesa.

Essa convivência forçada entre dous projetos estéticos e políticos é provavelmente involuntária, resultado de querer fazer um derradeiro filme para o estudo e um testamento fílmico puramente pessoal. Ambos os projetos convivem mal, já que o primeiro se liga a uma tradiçom comunitária e o segundo a expetativas puramente individuais. Daí, provavelmente, a impressom de desconexom e caos que transmite o visionado da fita. Mas a imperfeiçom de O rapaz e a garça, a sua aparente incapacidade para propor soluçons aos temas que abre, a incoerência entre os universos alegóricos que habitam o mundo real e o fantástico, som paradoxalmente os seus maiores sucessos, pois permitem sonhar com produtos culturais em que os mundos irreais sejam completamente autónomos do policiamento da Lei Moral: das famílias e do professorado.

Como professor de secundário eu próprio e como consumidor de ficçom, gostaria de prescindirmos da urgência por incluir uma moral final em cada produto estético. Especialmente se essa moral é facilmente extraível e depois transmissível numa oraçom singela.

Como professor de secundário eu próprio e como consumidor de ficçom, gostaria de prescindirmos da urgência por incluir uma moral final em cada produto estético. Especialmente se essa moral é facilmente extraível e depois transmissível numa oraçom singela. Nom porque a política nom deva figurar na ficçom, mas justamente ao contrário. Políticas som as personagens, as tramas, o estilo; temos um cérebro complexo e adestrado em reconhecer padrons, e é sabido que as liçons mais profundas e duradoiras que incorporamos de maneira tangencial. Se a preocupaçom é, pois, emancipatória, acho que explicar de mais é, para além de desnecessário condescente e aborrecido.

Do segundo filme que também é O rapaz e a garça nom é possível extrair um ensino prático evidente; de tirá-lo, seguramente for monstruoso. Devemos renunciar à vida plena individual e à transformaçom política do mundo para nos refugiar na ficçom? Devemos construir potentes formas de simulaçom que nos permitam pular de um mundo em colapso para um outro novo? Nada disso parece mui sensato. Mas a procura de uma resposta clara na ficçom às nossas preocupaçons existenciais, por muito que legitima, é um resíduo de épocas em que a estética nom existia como âmbito social autónomo. Nom as imos encontrar; no melhor dos casos, o que encontraremos será uma ordem social a se reproduzir a través da nossa leitura.

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